terça-feira, 29 de julho de 2008

Diário-Construção IX

(Sobre Meyerhold e uma poética do corpo)

(Nas indicações cénicas)

A personagem sai de casa e dirige-se para o carro. Leva as chaves na mão. Clica no botão, abre a porta e senta-se. Introduz a chave na ignição e roda-a uma vez. Baixa o vidro. Pisa o pedal da embraiagem até ao fundo e liga o motor. Coloca a mudança em ponto-morto e retira o pé do pedal. Liga o rádio. Cantarola. Coloca o cinto de segurança. Ajeita os espelhos retrovisores. Tira os óculos de sol da bolsa. Limpa-os, cuidadosamente, com um pano. Coloca-os. Liga o pisca-pisca esquerdo, volta a pisar o pedal da embraiagem, engrena a primeira mudança, olha para o retrovisor esquerdo, confirmando virando levemente a cabeça por cima do ombro. Acelera um pouco, soltando calmamente o pedal da embraiagem, permitindo que o veículo se ponha em marcha. Cantarola.
(No palco)
O actor vai em direcção a uma cadeira, colocada previamente pelo encenador, no centro do palco e senta-se. Coloca as mãos paralelas às pernas, como se conduzisse, imita o som do motor brum… brum… brum e põe-se em marcha vruuaam…

E recordo-me da histeria de movimentos que vi e fotografei aquando da apresentação da peça “Conflitos”, pelo GATUÉvora, no Fatal 2008. Impressionante. Apeteceu-me lá estar. A predisposição física foi uma lição de teatro. Um vendaval de sensações, apoiado por um texto que esqueci… o menos importante. Ficou todo aquele conjunto de movimentos alucinantes. Momentos houve em que só se ouvia a respiração tranquila e/ou ofegante dos actores. Teatro amador? Ironia das ironias… uma lição para muitos profissionais.

E é isto que me falta ainda. Trabalhar o corpo. Trabalhar. O corpo. Torná-lo o instrumento verdadeiro do teatro. Porque sei que antes de engrenar a primeira mudança, tenho que pisar um pedal. O da embraiagem. Assim, posso pensar que me basta sentar na cadeira, dizer brum brum brum e partir.

Posso sempre cantarolar.
Paulo Martins

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Um novo desafio...

Cada peça, e acima de tudo, cada personagem é um novo desafio!

Desta vez o desafio é maior!! Pelo menos para mim está a ser maior, bem maior!

Estar meses (anos!!) sem entrar na pele de uma outra pessoa que não eu e dar-lhe vida perante outros olhares; ser uma personagem que também ela própria representa um papel; utilizar uma linguagem e forma de falar totalmente diferentes da minha;
Tudo isto tem sido um deafio, mas o mais dificil tem sido libertar-me, soltar o corpo, fazer o corpo mostrar o que a personagem é, o que pensa, o que sente!!

É certo que se olharmos os outros que passam na rua, os outros com quem falamos, os outros que se sentam na cadeira à nossa frente, a sua linguagem corporal diz muito, fala por eles! Mas agora transmitir isso na palco (ou até agora nos ensaios) tem sido muito difícil! Tão dificil que dou comigo a preocupar-me tanto com isso que me esqueço das deixas e da forma de falar...

Sem dúvida, desta vez o desafio é maior! Mas também maior é a vontade!!

Joana

terça-feira, 22 de julho de 2008

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Do trabalho do actor II

Desde que comecei a escrever teatro, sempre escrevi para actores. Isto é duplamente verdade.
Primeiro: porque concebo a escrita teatral como um desafio (escondido?) para o trabalho de actor, ou seja, gosto de criar personagens, gosto de vê-las fugirem de mim no papel e gosto ainda mais de ver o actor pegar nelas e transformá-las em qualquer outra coisa ainda mais fugida de mim. Nesse sentido, encaro a escrita teatral como o primeiro passo da montagem teatral, uma espécie de laboratório de invenção da personagem que depois será construída pelo actor: a minha imaginação desenha os componentes, o texto experimenta a sua resistência e eficácia, mas só o actor conseguirá operar a montagem que sintetiza e depura tudo o que, até ali, foi apenas esboçado. Porque o palco é mais próximo da vida do que o papel e, por isso, a peça (e as personagens da mesma) são mais completas na cena implantada do que no texto escrito.
Segundo: porque existem actores reais que são a motivação para a minha escrita. Todo o teatro que escrevi até hoje foi em resposta directa a uma necessidade, muitas vezes porque havia um grupo com uma data marcada para uma estreia para a qual era preciso ter uma peça. Este é um dado de extrema importância, não só porque cria uma urgência que, de acordo com o meu temperamento, favorece o engenho, mas também porque define um objectivo imediato, dá-me a garantia de que o que escrevo será efectivamente representado em breve. Aspecto que chega a tornar-se vital para quem, como eu, existe apenas na e pela sua própria escrita...
Na verdade, se não fossem os actores reais, de carne e osso, para os quais escrevo, suponho que nunca me teria aventurado nos meandros da escrita teatral. A sua vontade de fazer teatro torna-me devedor de uma obrigação que só posso resgatar pela escrita. Por isso continuo a escrever. Por isso continuo a desejar que eles agarrem na minha escrita e a levem mais longe, transfigurando as personagens que lhes apresento e sublimando os textos que lhes dou em esboço. Sei que não é por mim que o fazem (e ainda bem!...). Sei que são amadores e que o fazem por eles próprios e pelo teatro. Encontramo-nos aí: essas são também as duas razões por que escrevo.

Álvaro Cordeiro

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Do trabalho do actor I

Escrevo para actores. Sempre escrevi para actores, desde que me lembro de escrever teatro. E faço-o com um sentimento cruzado de impotência e fascínio. Da impotência não quero falar agora, do fascínio sim.
Admiro o trabalho do actor, daí o fascínio. Comove-me essa capacidade, que considero natural no ser humano, de se desmontar a si próprio para se remontar noutro, de se ignorar naquilo que é quotidianamente (a ponto de chegar a ignorar o seu próprio quotidiano) para se fazer memória de uma verdade que nunca foi sua até ao momento de assumi-la como se não houvesse mais nada.
Digo que é uma capacidade natural ao ser humano porque muitos (se não todos...) a desenvolvemos em graus diferentes, mas fazemo-lo no nosso quotidiano, ou seja, somos outros dentro de nós mesmos todos os dias de diversas maneiras e, no limite, pulverizamo-nos de tal forma que corremos o risco de já não sabermos quem ou o que somos. Perdemo-nos. E isto não me fascina. Isto constrange-me.
Admiro o trabalho de actor porque o actor é um artista e sabe estabelecer a diferença. Isto quer dizer que consciencializa essa capacidade de ser outro, mas não a exercita no seu quotidiano; pelo contrário, desloca-a para o lugar onde ela deve estar: o teatro, entendido como espaço e tempo de realização artística, necessariamente separado da vida.
A arte não é a vida. A arte brota da vida, ou melhor, da realidade factual do artista, mas transforma-se numa realidade outra, projecta-nos a todos para uma dimensão transcendente, uma dimensão de sonhos, ideias, emoções e acções que podemos visitar, mas onde é impossível viver quotidianamente. Se calhar porque é bom demais. Se calhar porque a contemplação da arte é tão terrivelmente deslumbrante como a visão de Deus. Porque ambos são Eternidade.
É por isso que gosto de escrever para actores. Agrada-me a circunstância de, a partir de algo tão módico como a minha escrita, ser possível desenvolver uma criação artística que dê vida no palco às personagens que sugeri no texto. Aprecio a possibilidade de observar o modo como o actor pega na personagem que escrevi e a (re)cria de forma geralmente tão diferente do que eu imaginei. Como se se tratasse de uma cadeia de criatividade rumo a qualquer coisa. Há nisto um mecanismo de solidariedade artística que me diverte, porque percebo que ambos – autor e actor – fazemos a mesma busca por caminhos diferentes: estamos à procura da Personagem Eterna.


Álvaro Cordeiro