(Nas indicações cénicas)
A personagem sai de casa e dirige-se para o carro. Leva as chaves na mão. Clica no botão, abre a porta e senta-se. Introduz a chave na ignição e roda-a uma vez. Baixa o vidro. Pisa o pedal da embraiagem até ao fundo e liga o motor. Coloca a mudança em ponto-morto e retira o pé do pedal. Liga o rádio. Cantarola. Coloca o cinto de segurança. Ajeita os espelhos retrovisores. Tira os óculos de sol da bolsa. Limpa-os, cuidadosamente, com um pano. Coloca-os. Liga o pisca-pisca esquerdo, volta a pisar o pedal da embraiagem, engrena a primeira mudança, olha para o retrovisor esquerdo, confirmando virando levemente a cabeça por cima do ombro. Acelera um pouco, soltando calmamente o pedal da embraiagem, permitindo que o veículo se ponha em marcha. Cantarola.
(No palco)
O actor vai em direcção a uma cadeira, colocada previamente pelo encenador, no centro do palco e senta-se. Coloca as mãos paralelas às pernas, como se conduzisse, imita o som do motor brum… brum… brum e põe-se em marcha vruuaam…
E recordo-me da histeria de movimentos que vi e fotografei aquando da apresentação da peça “Conflitos”, pelo GATUÉvora, no Fatal 2008. Impressionante. Apeteceu-me lá estar. A predisposição física foi uma lição de teatro. Um vendaval de sensações, apoiado por um texto que esqueci… o menos importante. Ficou todo aquele conjunto de movimentos alucinantes. Momentos houve em que só se ouvia a respiração tranquila e/ou ofegante dos actores. Teatro amador? Ironia das ironias… uma lição para muitos profissionais.
E é isto que me falta ainda. Trabalhar o corpo. Trabalhar. O corpo. Torná-lo o instrumento verdadeiro do teatro. Porque sei que antes de engrenar a primeira mudança, tenho que pisar um pedal. O da embraiagem. Assim, posso pensar que me basta sentar na cadeira, dizer brum brum brum e partir.
Posso sempre cantarolar.
Paulo Martins