quinta-feira, 10 de julho de 2008

Do trabalho do actor I

Escrevo para actores. Sempre escrevi para actores, desde que me lembro de escrever teatro. E faço-o com um sentimento cruzado de impotência e fascínio. Da impotência não quero falar agora, do fascínio sim.
Admiro o trabalho do actor, daí o fascínio. Comove-me essa capacidade, que considero natural no ser humano, de se desmontar a si próprio para se remontar noutro, de se ignorar naquilo que é quotidianamente (a ponto de chegar a ignorar o seu próprio quotidiano) para se fazer memória de uma verdade que nunca foi sua até ao momento de assumi-la como se não houvesse mais nada.
Digo que é uma capacidade natural ao ser humano porque muitos (se não todos...) a desenvolvemos em graus diferentes, mas fazemo-lo no nosso quotidiano, ou seja, somos outros dentro de nós mesmos todos os dias de diversas maneiras e, no limite, pulverizamo-nos de tal forma que corremos o risco de já não sabermos quem ou o que somos. Perdemo-nos. E isto não me fascina. Isto constrange-me.
Admiro o trabalho de actor porque o actor é um artista e sabe estabelecer a diferença. Isto quer dizer que consciencializa essa capacidade de ser outro, mas não a exercita no seu quotidiano; pelo contrário, desloca-a para o lugar onde ela deve estar: o teatro, entendido como espaço e tempo de realização artística, necessariamente separado da vida.
A arte não é a vida. A arte brota da vida, ou melhor, da realidade factual do artista, mas transforma-se numa realidade outra, projecta-nos a todos para uma dimensão transcendente, uma dimensão de sonhos, ideias, emoções e acções que podemos visitar, mas onde é impossível viver quotidianamente. Se calhar porque é bom demais. Se calhar porque a contemplação da arte é tão terrivelmente deslumbrante como a visão de Deus. Porque ambos são Eternidade.
É por isso que gosto de escrever para actores. Agrada-me a circunstância de, a partir de algo tão módico como a minha escrita, ser possível desenvolver uma criação artística que dê vida no palco às personagens que sugeri no texto. Aprecio a possibilidade de observar o modo como o actor pega na personagem que escrevi e a (re)cria de forma geralmente tão diferente do que eu imaginei. Como se se tratasse de uma cadeia de criatividade rumo a qualquer coisa. Há nisto um mecanismo de solidariedade artística que me diverte, porque percebo que ambos – autor e actor – fazemos a mesma busca por caminhos diferentes: estamos à procura da Personagem Eterna.


Álvaro Cordeiro

Sem comentários: