quinta-feira, 22 de maio de 2008

Diário-Construção V

Aquele espaço já foi, realmente, diferente. Há cadeiras vazias que agora vou ocupando, outrora preenchidos por pessoas cujas vidas desapareceram há muito. Uns porque a vida lhes foi amarga, outros porque o Inferno lhes é o menor dos males. Tempos houve em que o mereci, também. As memórias de Paris ainda me perseguem e é preciso estar atento. Há qualquer coisa no ar. O termo técnico é pressentimento. Aquela que lá surgiu, com aquele sotaque estrangeiro, deve ser louca. Entretanto, a outra continua sem perceber o que se passa. Tento dizer-lhe as coisas mas ela não percebe. Há momentos em que me irrita aquela peixeirada toda. Gostava de a ver um pouco mais culta, com outras roupas, mais composta. Apeteceu-me agarrá-la e dançar, como fazíamos noutros tempos. Entretanto, vou piscando o olho à outra. Apesar da profissão, é uma mulher que me levaria a fazer uma viagem em alto mar, onde ninguém, depois, nos ouviria. Mas não sei… Às vezes penso que… mas não, seria demasiadamente ridículo… Apeteceu-me dançar.

Começo o exercício a recordar uma das obras mais originais que já li até hoje, O Ensaio sobre a Cegueira, livro já adaptado ao cinema por um realizador espanhol e muito bem criticado pelo próprio José Saramago e a estrear em Novembro. Há uma cegueira que se abate sobre todos nós, à excepção de um. Como na obra. Afinal, “Em terra de cegos, quem tem olho é rei”. Vamo-lo sendo todos, um a um. A dificuldade surge com os números. Vamos projectando a voz para um cego, distante, e ele tem que perceber que aquela voz é para ele. É necessário perceber de que forma nos toca essa voz. E também é preciso experimentar várias vozes, vários tons. É importante reter esses tons. Vão ser úteis, muito úteis, à personagem. Por vezes, pensamos que é para nós mas nem sempre acontece. Repete-se o exercício até que a voz-luz nos toque. Depois, voltamos a fazer o exercício da passagem do raio. É-me, particularmente, importante a repetição destes exercícios. Também foi algo que aprendi em workshops e que fazia com o meu grupo, na escola. De semana para semana, a concentração ia aumentando e ia sentido, naqueles miúdos, uma maior predisposição para o ensaio. Agora também vou sendo esse miúdo e todos os dias vou sendo mais diferente.

Voltei a sentir o gozo do teatro, o brincar no palco. Ele vai surgindo, já mais feliz. Há um bloco, pequeno, um lápis ainda mais pequeno, que se vão tornando a extensão do corpo. O xadrez também se torna cada vez mais a metáfora da vida em sociedade. O texto, a base, torna-se um peso, em determinados momentos. É urgente, cada vez mais, que deixe de ter o texto. Mas é preciso enquanto não se tornar pensamento da personagem. Saí com uma sensação de menos opressão, deste ensaio. Foi mesmo muito importante que tivesse sido assim. Porque há momentos em que se pensa que está na hora de, efectivamente, fechar a cortina. Vai acontecer, um dia. Até lá, é preciso respirar este oxigénio-teatro, que é vida.

Paulo Martins

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Diário-Construção IV

Levantei-me e fui até lá. As mesmas conversas. Se ela ao menos soubesse. Não tive problemas com o que me ia pelo pensamento. Disse sempre aquilo que me apetecia, com uma fluidez que me deixava, por vezes, quase eufórico. Sei aquilo que quero e é por isso que vou lutar. É realmente curioso, o xadrez. É através daquele conjunto repetitivo de quadrados pretos e brancos que vou construindo as minhas jogadas mais subtis. Ela devia mesmo remodelar aquela espelunca.

Volto ao texto. É deveras curioso todo este processo. A memória é uma caixinha de surpresas. Voltaram a abrir-se determinadas gavetas e o texto, já esquecido, surgiu, de uma forma quase espontânea. Com ele, novas ideias, a vontade de experimentar novos caminhos. É verdade que muito ficou por fazer de uma profissão que se quer sorridente mas cada vez mais tristonha e cinzenta. Mas se é verdade que quando uma borboleta bate as asas num sítio noutro se forma um ciclone, então há que tentar o equilíbrio entre aquilo que se é e aquilo que se gostava de ser. Afinal, somos mesmo dois. Ou mais. É necessário trabalhar para o grupo e pelo grupo. Neste processo, cheio de surpresas e de novas aprendizagens, é importante que se dê a volta a um texto que parece ainda um pouco marcado pelo não-acontecimento. A vida-outra não vai facilitando. Mas é neste remar contra a maré que, por vezes, se consegue chegar ao cais. Aquele... sabem...? o dito por Pessoa.
E fecha-se a cortina.
Paulo Martins

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Diário-Construção III

… e há uma bola-pensamento que vai passando de mão em mão. É recebida com muita dificuldade. A bola é lançada com muita dificuldade e passa, como que por magia, a ser como um balão. Uma bola de basquetebol, uma bola de basebol. E de futebol também. Vamos dançando ao sabor desta bola-pensamento, que nos obriga quase a deitarmo-nos, ou a tornarmo-nos leves como o vento. O corpo vai aquecendo, a imaginação torna-se mais rica. O mundo, entretanto lá fora, vai ficando cada vez mais distante, ao contrário do ser-outro, que cada vez mais nos toca… ou quer tocar.

Surgem, depois, as palavras.
afinal foste tu quem eu não foste tu
Está criada a cadeia. Começa por ser fácil. Mas, depois, torna-se necessário reinventar. A intencionalidade que vai dar mais força à personagem. Vá lá, aparece mais um pouco, não te escondas. O texto teima em aparecer… Criada que está a cumplicidade entre todos, transformamo-nos em samurais. Porque a vida é feita de tensões várias. Porque a vida, também, é feita com o escuro. A bola-pensamento-espada. A distância entre os adversários é considerável. Are you talking to me?... Are you… talking to me?... Olhos nos olhos, caminhamos com a vontade de eliminar o obstáculo. O golpe tem que ser rápido e indolor. A vida toda naquele gesto. É necessário defendê-la a todo o custo e o olhar do adversário deverá ser transparente e previsível. É preciso guardar a tensão para a personagem. O golpe. A morte. E a vida.

Volto a sair daquele espaço onde estive durante uma semana. Quero as palavras. Mas sinto-me mudo. Saem feridas. Outro. Estou a aumentar, a olhos vistos a minha decadência. E ele, que não há maneira de me apresentar…!
E fecha-se a cortina.
Paulo Martins

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Diário-construção II

É, acima de tudo, a frustração por ter perdido tudo aquilo que tinha construído até ao momento (apesar de pouco) que sinto após este ensaio. Hoje foi a vez do Acto II e, por isso, o momento de voltar a sentir toda a complexidade de construção de uma personagem. Já tinha referido anteriormente. Está a ser particularmente difícil, desta vez. A predisposição mental é outra, consequência, entre outras, de uma profissão que se torna, de dia para dia, mais esgotante, mais burocrata, menos preocupada (assim o querem os legisladores!) com aquilo que realmente interessa. Mas isso são outras “guerras” que, apesar de o serem, acabam por me levar a sentir, por exemplo, uma dificuldade muito maior em decorar texto. Esta situação leva, também, a que o ensaio seja feito com uma âncora que acaba por arrastar para o fundo e não segurar algo. A personagem passa a existir com um só braço e, às vezes até, sem nenhum, já que é preciso que o actor mude a folha. A leitura passa a ser a voz da personagem, que por sua vez se transforma na personagem…-pode-retirar-o-seu-dinheiro. É verdade que o processo tem sido completamente diferente. Subitamente, o V e o P tornam tudo muito simples e é fantástico vê-los dar o exemplo e tentar, depois, não imitar, mas perceber e tentar fazer diferente. Os exercícios iniciais que temos feito criam uma grande disponibilidade para o ensaio. O da garrafa de água foi muito curioso e houve, realmente, momentos que praticamente não se ouviu a água, tal era a fluidez com que o fazíamos. Depois, foi muito agradável voltar a fazer o do raio que me fez viajar, um pouco, até alguns workshops de teatro feitos em anos anteriores. Há um sentido em todos aqueles exercícios e a forma como também o V nos vai alertando para isso é incrível. Parece tudo tão fácil mas… “isto não é fácil!”. Torna-se, por isso, imperativo decorar o texto e tentar não esquecer, por muito cansaço mental que se tenha, por… por…por… o que foi feito na semana anterior.
Sempre que penso no teatro, penso no privilégio que é o ser-se capaz de se ser outro, de poder ser esse poeta fingidor. Porque há sempre, também, aquela entidade que paira sobre mim, no momento em que vou para o palco, e que me vai sorrindo. E no final, é bom ver a personagem fazer as malas pois já alguém a chama noutro tempo e noutro espaço.
E fecha-se a cortina.
Paulo Martins