Aquele espaço já foi, realmente, diferente. Há cadeiras vazias que agora vou ocupando, outrora preenchidos por pessoas cujas vidas desapareceram há muito. Uns porque a vida lhes foi amarga, outros porque o Inferno lhes é o menor dos males. Tempos houve em que o mereci, também. As memórias de Paris ainda me perseguem e é preciso estar atento. Há qualquer coisa no ar. O termo técnico é pressentimento. Aquela que lá surgiu, com aquele sotaque estrangeiro, deve ser louca. Entretanto, a outra continua sem perceber o que se passa. Tento dizer-lhe as coisas mas ela não percebe. Há momentos em que me irrita aquela peixeirada toda. Gostava de a ver um pouco mais culta, com outras roupas, mais composta. Apeteceu-me agarrá-la e dançar, como fazíamos noutros tempos. Entretanto, vou piscando o olho à outra. Apesar da profissão, é uma mulher que me levaria a fazer uma viagem em alto mar, onde ninguém, depois, nos ouviria. Mas não sei… Às vezes penso que… mas não, seria demasiadamente ridículo… Apeteceu-me dançar.
Começo o exercício a recordar uma das obras mais originais que já li até hoje, O Ensaio sobre a Cegueira, livro já adaptado ao cinema por um realizador espanhol e muito bem criticado pelo próprio José Saramago e a estrear em Novembro. Há uma cegueira que se abate sobre todos nós, à excepção de um. Como na obra. Afinal, “Em terra de cegos, quem tem olho é rei”. Vamo-lo sendo todos, um a um. A dificuldade surge com os números. Vamos projectando a voz para um cego, distante, e ele tem que perceber que aquela voz é para ele. É necessário perceber de que forma nos toca essa voz. E também é preciso experimentar várias vozes, vários tons. É importante reter esses tons. Vão ser úteis, muito úteis, à personagem. Por vezes, pensamos que é para nós mas nem sempre acontece. Repete-se o exercício até que a voz-luz nos toque. Depois, voltamos a fazer o exercício da passagem do raio. É-me, particularmente, importante a repetição destes exercícios. Também foi algo que aprendi em workshops e que fazia com o meu grupo, na escola. De semana para semana, a concentração ia aumentando e ia sentido, naqueles miúdos, uma maior predisposição para o ensaio. Agora também vou sendo esse miúdo e todos os dias vou sendo mais diferente.
Voltei a sentir o gozo do teatro, o brincar no palco. Ele vai surgindo, já mais feliz. Há um bloco, pequeno, um lápis ainda mais pequeno, que se vão tornando a extensão do corpo. O xadrez também se torna cada vez mais a metáfora da vida em sociedade. O texto, a base, torna-se um peso, em determinados momentos. É urgente, cada vez mais, que deixe de ter o texto. Mas é preciso enquanto não se tornar pensamento da personagem. Saí com uma sensação de menos opressão, deste ensaio. Foi mesmo muito importante que tivesse sido assim. Porque há momentos em que se pensa que está na hora de, efectivamente, fechar a cortina. Vai acontecer, um dia. Até lá, é preciso respirar este oxigénio-teatro, que é vida.
Paulo Martins
Sem comentários:
Enviar um comentário